sábado, 14 de agosto de 2010

M234 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné II

Continuação da mensagem M233

Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos anos.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciada na mensagem M234 :
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
O presente capítulo descreve, articula, analisa e explica a qualidade do desempenho das elites militares e o «sistema de forças» que Portugal instalou nos três teatros de operações em África, ao longo dos treze anos de duração da Guerra. Não pretendo abordar o conjunto das tropas em presença, mas o sistema de forças em acção. Portugal instalou e fez operar um sistema de forças estruturado, segundo as imagens que progressivamente se iam constituindo sobre a realidade de cada um dos três teatros de operações, respectivamente em Angola, em Moçambique e na Guiné.
A descrição e análise, objectiva e cuidada, da forma como as elites militares portuguesas conduziram e executaram a Guerra de África, impõe que se proceda a uma leitura do que sobre a matéria escreveram diversos especialistas no assunto, bem como sobre o que fizeram e como o levaram a efeito outros países em situações semelhantes. Ao pretender investigar a formação das elites militares, tenho que a objectivar em função de um fim, o qual, no caso vertente, era a condução e execução da Guerra de África. A qualidade e o valor dessa formação só pode ser aferido através da qualidade do desempenho que as elites militares tiveram nessa mesma Guerra.
Não me preocupa apreciar os currículos dos vários cursos, em termos abstractos, nem das diversas reformas que foram postas em curso ao longo dos vários anos em que foram formadas as elites que dirigiram ou executaram a Guerra. Preocupa-me sim, saber se as elites estavam ou não devidamente capacitadas para a execução das tarefas que lhe foram então cometidas. Neste sentido, analiso a formação das elites face ao respectivo desempenho, para depois se procurarem encontrar os fundamentos dos êxitos ou dos erros, os quais podem ter os seus fundamentos na formação técnico-táctica que as elites possuíam e, então, se analisam as reformas e os currículos que funcionarão como variáveis explicativas.
Estimo a formação a três níveis, que correspondem às minhas três hipóteses de trabalho, já atrás delimitadas, as quais hão-de confirmar se as elites estavam ou não dotadas das capacidades de comando, direcção ou combate, consoante o nível da estrutura hierárquica em que actuavam.
Para aferir as capacidades das elites militares segui duas linhas de investigação: na primeira comparei a Guerra de África, com guerras semelhantes nas quais estiveram envolvidos outros países, para concluir se os militares portugueses foram mais ou menos eficazes que os seus congéneres estrangeiros; na segunda compararei os militares portugueses entre si, no sentido de apreciar ou encontrar relevâncias que esclareçam, no contexto global do seu desempenho, o impacto da respectiva formação técnico-táctica, das características psicofisiológicas do combatente e da sua experiência.
1 – A GUERRA PORTUGUESA E AS OUTRAS GUERRAS

À procura de semelhanças ou diferenças entre a Guerra de África e as Guerras dos outros países, abordei obras de diversos autores que se dedicaram a esse estudo. Bernard Trainor, General americano, defendeu o seguinte sobre a Guerra de África: “enquanto outros estados europeus garantiam a independência às suas possessões africanas, Portugal decidia ficar e lutar, apesar das poucas probabilidades de vir a ser bem sucedido. Constitui um feito notável que o tenha conseguido com êxito durante treze anos nas três frentes de Angola, Guiné e Moçambique, em especial para uma nação de recursos tão modestos. Conquanto o exército tenha um importante papel na contra-guerrilha, no fundo continua a tratar-se de uma luta política. Como consequência, o papel das forças armadas não se cinge necessariamente a conseguir uma vitória militar imediata, mas a conter a violência, a proteger as pessoas de ameaças, a impedir o acesso de guerrilheiros às populações locais, às suas reservas de alimentos e de recrutamento, a ganhar a confiança com iniciativas sociais, e, através de tais actividades, a conseguir incutir nas chefias rebeldes o respeito suficiente para induzir negociações políticas. O exército português cumpria todos estes requisitos. A sua rota para o sucesso não foi sempre linear; no entanto, aprendeu com os seus erros e continuou flexível nas suas opiniões. Teve a capacidade de aprender enquanto actuava. No final, infelizmente, os políticos portugueses malbarataram as vitórias militares ganhas a tanto custo, recusando chegar a acordo com os revoltosos” (Cann, 1998: Prólogo).
Trainor, figura de relevo nestas matérias, considera que o Exército português desenvolveu os actos que estavam ao seu alcance, chegando mesmo a classificá-los de «feito notável». No entanto, não deixa de considerar que o Exército «aprendeu com os seus erros», considerando assim que os houve, esclarecendo, contudo, que a experiência é um factor a considerar, que ninguém possuía, no início do conflito.
E continua este General, professor universitário e investigador: “o exército português aperfeiçoou a sua filosofia e pô-la em prática de modo a competir com a estratégia das guerras prolongadas de guerrilha, e, ao fazê-lo, seguiu as lições colhidas das experiências britânicas e francesas em guerras de pequena escala. Portugal definiu e analisou o problema da insurreição à luz destes conhecimentos acumulados em contra-insurreição, desenvolveu neste contexto as suas políticas militares e aplicou-as ao ambiente colonial africano. O modo como os portugueses abordaram o conflito foi diferente, ao procurarem combinar o «pau de dois bicos» que era a estratégia nacional de conter os custos da guerra e de estender os encargos às colónias, com a solução no campo de batalha” (Cann, 1998: Prólogo).
Trainor, em mais este parágrafo, manifesta o seu apreço sobre a forma como as elites militares estruturaram a Guerra, salientando, uma vez mais, a habilidade como se utilizou a experiência alheia e se evoluiu na própria.
Para John Cann, outro Oficial americano relevante: “existem invariavelmente dois lados na história de cada guerra, e estas campanhas não foram excepção. O exército português foi confrontado com a difícil tarefa de «ganhar uma guerra de libertação nacional» numa época em que não era prudente conservar um império colonial. Numa guerra de tal cariz, a vitória pode ser conquistada militarmente, mas o mais provável é ser conseguida através de um compasso de espera, durante o qual o governo ganha credibilidade através do exército e de iniciativas sociais, e leva por esse meio os guerrilheiros a negociar. Conseguir fazê-lo não é proeza pequena, numa guerra em que os guerrilheiros procuram minar totalmente qualquer autoridade. (...) Infelizmente, os líderes políticos portugueses não tiveram visão e mantiveram-se afastados da realidade, tendo os sucessos militares e sociais sido desperdiçados pela intransigência política” (Cann, 1998: 9) (1).
Numa outra passagem da sua obra Cann acrescenta: “entre 1961 e 1974, Portugal enfrentou a tarefa extremamente ambiciosa de dirigir três campanhas de contra-insurreição simultaneamente: na Guiné, em Angola e em Moçambique. Nessa altura, Portugal não era um país rico nem desenvolvido. De facto, pela maioria dos padrões de avaliação económica, era o menos rico dos países da Europa Ocidental. Deste modo, constitui um feito notável que Portugal, em 1961, conseguisse mobilizar um exército, o transportasse para as suas colónias em África, a muitos quilómetros, aí estabelecesse numerosas bases logísticas em locais-chaves, de maneira a fornecer-lhe apoio, o preparasse com armas e equipamento especial e o treinasse para um tipo de guerra muito específico. O que se torna ainda mais digno de nota pelo facto de estas tarefas terem sido cumpridas sem qualquer experiência anterior, nem competência provada em campo, em matéria de projecção de poder ou de guerra de contra-insurreição, e, por conseguinte, sem beneficiar de instrutores competentes nessas especialidades. Para que se constate melhor este último ponto, e com excepção de algum episódio de pacificação colonial, Portugal não disparava um tiro desde a Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha invadiu o Norte de Moçambique e o Sul de Angola” (Cann, 1998: 19).
Tal como Trainor, também Cann não poupa elogios ao método desenvolvido por Portugal para conduzir a Guerra de África e, também ele, acentua a questão da experiência. Importa, contudo, tecer uma consideração: não se está, aqui, a apreciar a razão da Guerra, mas tão só a capacidade das elites para a sua condução. Quando defendo que fizeram bem, não estou a dizer «que fizeram bem em fazer a guerra» mas, tão só, que «fizeram bem a Guerra».
O objectivo principal numa guerra subversiva, como era o caso, consiste na conquista da população. Pode-se mesmo dizer que a população é o meio (no sentido de ambiente ou de campo de acção) no qual a subversão se processa, sendo também o objectivo a conquistar e ainda, uma das armas utilizadas para atingir esse objectivo. Nenhuma acção subversiva terá quaisquer probabilidades de êxito sem primeiro conseguir o apoio, voluntário ou forçado, consciente ou inconsciente, de uma parte numerosa da população; e, reciprocamente, uma vez conseguido esse apoio, as suas probabilidades de vitória são muito grandes. Como afirmou Mao-Tsé-Tung, “a população é para o insurrecto o mesmo que a água é para o peixe” (EME, Vol. I, 1963: Cap. I, 19).
A partir deste conhecimento as autoridades estabelecidas sabiam que, para combater a subversão, era necessário que fossem tomadas medidas que contrariassem as suas características. Desde logo, e porque sem população não há subversão, tinham que ser tomadas todas as medidas que impedissem a propaganda subversiva, no sentido de trazer a população para o lado das autoridades estabelecidas. Tanto mais que o que separa a população do Guerrilheiro é apenas o momento. Neste sentido, era por demais evidente que a luta contra a subversão não podia ser levada a efeito exclusivamente pelas forças militares através do combate à guerrilha. Mas, complementarmente, as forças militares podiam também ser utilizadas no apoio e assistência à população com os seus médicos e capelães, administrando justiça e instrução, fornecendo alimentação e medicamentos, aumentando-lhe o moral com a sua presença, bem como, quando necessário, assegurar o funcionamento de certos serviços essenciais desorganizados e auxiliar as autoridades e as suas forças policiais nas actividades que a estas competiam.
Importa conhecer a população que constituía o meio onde as forças portuguesas actuaram (2). Este caracterizava-se, quase sempre, por uma pequeníssima densidade de habitantes “civilizados” (3) e por habitantes nativos, em muito maior número, que tinham um nível de instrução muito baixo e costumes e crenças completamente diferentes dos europeus. Desta situação derivavam, para a luta contra a subversão, certas dificuldades que foram incidir em especial na organização, equipamento, instrução, instalação, modo de vida e combate das forças da ordem.
Se o mosaico populacional apresentava sérias dificuldades de actuação, as condições económicas portuguesas não eram melhores. Pelos padrões europeus, Portugal não possuía um aparelho económico poderoso com que pudesse suportar facilmente uma aventura militar distante e de grande envergadura. Basta comparar a situação portuguesa com a dos outros países, que enfrentaram guerras semelhantes que, todos eles, as perderam, para se concluir que assim era.
A Grã-Bretanha, que combateu na Malásia entre 1948 e 1960, e no Quénia entre 1952 e 1956; a França, que combateu na Argélia entre 1956 e 1962; e os EUA que combateram no Vietname entre 1965 e 1973. Ao lado destes veteranos em contra-insurreição, a economia de Portugal encontrava-se verdadeiramente anémica e levantava sérias dúvidas acerca da sua capacidade para sustentar um tal empreendimento militar. O PIB de Portugal nas vésperas da Guerra, em 1960, era de 2,5 biliões de dólares. O PIB da Grã-Bretanha era de 71 biliões de dólares, 28 vezes o de Portugal. O PIB da França era de 61 biliões de dólares, 24 vezes o de Portugal. O PIB dos EUA, era de 509 biliões de dólares, 203 vezes o de Portugal. Quando estes números se reduzem ao PIB per capita, que é o indicador da capacidade da riqueza produzida e tributada para apoiar uma Guerra, a relativa fraqueza económica de Portugal é tão evidente que suscita imediatamente a dúvida sobre a sua capacidade para sustentar e gerir qualquer Guerra (4).
Perante estes dados John Cann considera que Portugal “teria de adoptar estratégias diferentes das da Grã-Bretanha, França e Estados Unidos. Teria de superar estas sérias limitações planeando formas de as contornar e de evitar o seu impacto directo na capacidade para gerir a guerra. Existiam dois elementos-chave que escoravam o esforço de Portugal neste campo. O primeiro era disseminar o mais possível o fardo da guerra; o segundo, manter o ritmo do conflito suficientemente lento para que os recursos fossem suficientes. Às práticas de contra-insurreição adoptadas por Portugal e que reflectiram estas duas políticas nacionais na condução das campanhas, pode dar-se o nome de «modo português de fazer a guerra»” (Cann, 1998: 29).
A interpretação deste autor quanto à forma como Portugal conduziu a Guerra de África, merece um amplo consenso. A situação não apresentava alternativa, pois a capacidade de Portugal manter uma campanha militar à distância teria de incluir, forçosamente, as vastas e dinâmicas economias de Angola e de Moçambique. No início do conflito, em 1962, o PIB de Portugal continental era de 2,88 biliões de dólares. A estes números devem acrescentar-se os 803,7 milhões do PIB de Angola, a importância semelhante de 835,5 milhões do PIB de Moçambique, e os 85,1 milhões da Guiné (Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1973: 76). Este quadro completo revela uma nação com um PIB de 4,6 biliões de dólares e modifica consideravelmente a equação da riqueza.
Segundo Cann, Portugal orientou o conflito disseminando os custos da Guerra e mantendo-a num ritmo lento, mas falta acrescentar que os militares portugueses, particularmente as Praças, prestaram o seu serviço militar praticamente sem qualquer vencimento (5). A alimentação fornecida a todos os militares era de má qualidade e de pouca quantidade: só a fome não escasseava. Os fardamentos apuravam-se até ao seu limite, passando de homem para homem: termo que uso intencionalmente, pois a distribuição de fardamento, já usado por outros militares, era extensiva a Sargentos e a Oficiais. As instalações, à excepção das existentes nas maiores cidades, não existiam: os militares viviam em tendas, quando as havia. Temos, então, que os custos com o pessoal foram extremamente reduzidos relativamente às outras guerras citadas.
Em resumo, os baixos custos da Guerra ficaram a dever-se às seguintes questões: baixa tecnologia da guerra, o que implicava baixos custos com material; baixa intensidade da guerra, o que implicava baixos consumos de material; baixos custos com pessoal, reflectindo-se nos baixos salários aos graduados; nos baixos (quase nulos) salários (pré) às praças; no fardamento muitas vezes já usado; na má alimentação, em quantidade e qualidade, e na inexistência de instalações.
Não obstante a situação descrita, em 1965, com quatro anos de Guerra, o orçamento da defesa representava 48 por cento do orçamento nacional de Portugal Continental. No fim do conflito, as três Colónias tinham contribuído aproximadamente com 16 por cento do orçamento da defesa (Cunha, Joaquim, 1977: 58). Esta contribuição, juntamente com a inclusão das economias coloniais, significava que Portugal estava a gastar em média, com a defesa, apenas cerca de 28 por cento do seu orçamento nacional, tendo alcançado um ponto culminante de 34 por cento em 1968 (Cunha, Joaquim, 1977: 61).
As Colónias não contribuíram para a guerra apenas em meios financeiros, visto o recrutamento local ter sido também significativo. Este teve início em 1961, com índices modestos, quando representava 14,9 por cento das forças em Angola, 26,8 por cento em Moçambique e 21,1 por cento na Guiné. Em 1974, por alturas do fim da guerra, e com a expansão das forças de segurança às milícias e outras organizações para-militares, os africanos representavam no total 50 por cento das forças em Angola, 50 por cento na Guiné e 54 por cento em Moçambique (Cunha, Joaquim, 1977: 130 e 159; e, EME, B, Vol. I, 1988: 259 e 260) para um total de 149 000 homens.
2 – A “AFRICANIZAÇÃO” PORTUGUESA
Portugal virou-se, continuamente e cada vez mais, para as Colónias, a fim de preencher a sua necessidade de efectivos militares, tal como fizera no passado, embora nunca com a dimensão destas Campanhas. As tropas africanas representavam uma tradição de serviço ou colaboração com Portugal em tempos de necessidade, desde os primórdios das Colónias. Em quase todos os anos, entre 1575 e 1930, houve uma campanha colonial algures na África portuguesa e as forças auxiliares e irregulares africanas provaram ser indispensáveis. Desde a chamada «guerra preta» das campanhas de 1681 até ao Século XX estas detinham um passado de lealdade e podiam ser reunidas num curto período de tempo (Boxer, 1963: 32). Esta flexibilidade significava que Portugal não tinha de mobilizar um grande número das suas tropas continentais e de transportá-las para África, em tempos de crise colonial. Embora as campanhas anteriores tivessem sido operações de pacificação e não do mesmo género das insurreições modernas, com a sua temática política tinham, no entanto, criado um precedente para a extensa africanização das Campanhas por Portugal.
Allen Isaacman fez uma valiosa apreciação do uso de tropas recrutadas localmente na campanha de 1870-1902 pelo controlo do vale do Zambeze, quando afirma: “A capacidade de Lisboa de recrutar uma grande força africana proporcionou um apoio crucial para o seu sucesso. Só menos de três por cento do total do exército de vinte mil homens eram de ascendência portuguesa” (Isaacman, 1976: 65). Esta informação histórica contribuiu de forma muito significativa, para se compreender a evolução do nosso Exército e a formação dos Oficiais de carreira. Como abundantemente se provou ao longo de toda a investigação, os Oficiais de carreira nunca comandaram tropas nativas, o que significa, muito claramente, que estas campanhas de ocupação foram comandadas pelos chamados «oficiais tarimbeiros» ou seja, aqueles que efectuavam o seu percurso com origem em Soldado.
No Século XX, a «guerra preta» continuou a ser utilizada, tanto em operações de pacificação, até ao seu final em 1930, como na Primeira Guerra Mundial, e resistiu como uma força considerável na defesa das Colónias (Dias, 1932: 611 a 619). O General Norton de Matos tinha recomendado, em 1924, que fossem mantidos em Angola níveis de tropas indígenas de 15000 regulares apoiados por um sistema que pudesse mobilizar mais 45000 reservistas em tempo de guerra (Norton, 1924: 85). A dependência continuada das tropas coloniais como fonte de efectivos, era uma política de defesa estabelecida, e em 1924 foi calculado que, de todas as fontes, 460 000 homens, em 28 divisões, podiam ser utilizadas numa crise nacional (Villas, 1924: 72). Neste cálculo, Angola e Moçambique deveriam fornecer 71 por cento, ou 20 divisões, totalizando 325 000 homens.
Moçambique fora também base fértil de recrutamento para necessidades de tropas noutras Colónias desde o princípio do Século XX. Eram formadas uma ou duas companhias por ano e utilizadas em turnos de dois anos entre 1906 e 1932 (Martins, 1936: 34). Estas utilizações incluíam quase todas as Colónias: Angola, Guiné, Timor, Macau, São Tomé e Índia. Consequentemente, a reputação das tropas moçambicanas estava bem estabelecida em 1961.
Durante a Primeira Guerra Mundial, Portugal lutou em França, no Sul de Angola e no Norte de Moçambique. A maior campanha levada a cabo foi a defesa de Moçambique contra as incursões alemãs. Portugal enviou 32 000 homens da Metrópole e recrutou rapidamente outros 25 000 localmente (Cunha, Joaquim, 1977: 73; e, Selvagem, 1919: 410 a 416) (6).
Muitas companhias de pessoal indígena foram formadas e treinadas sob as mais difíceis condições, e tiveram um desempenho admirável nesta campanha. No final das hostilidades, um Major português que aí dirigira as tropas, reconheceu o seu papel vital neste conflito, afirmando: “Durante os quatro anos de luta, a nossa infantaria africana nativa lutou sempre com uma determinação corajosa, quando bem apoiada e dirigida... A maioria dos portugueses desconheceu esta valiosa colaboração pela causa por que lutávamos” (Aragão, 1926: 22 e 23).
Antes das campanhas de África (1961-1974), a história e os feitos das tropas africanas recrutadas localmente não foram muito apreciados, particularmente na Metrópole. A razão por que a sua contribuição permaneceu tão obscura é um mistério, apesar do facto ter sido o mais venerável de entre todos os poderes coloniais africanos (Cann, 1998: 133). John Cann considera esta falta de conhecimento público um mistério, todavia, a situação percebe-se claramente: os Oficiais de carreira, com mais cultura, foram os únicos a escrever as «crónicas dos feitos africanos»; como eles não comandavam, como nunca comandaram estas tropas, não lhes interessava elevar o seu desempenho, porque, ao fazê-lo, elevavam os feitos dos Oficiais tarimbeiros, que as comandavam. Afinal, as disputas entre os Oficiais dos vários quadros são tão antigas quanto o próprio Exército.
“Na campanha da África Oriental foram-nos muito dedicados os carregadores indígenas. Dos factos mais notáveis que testemunham essa dedicação podemos apontar, durante o cerco de Nevala, o feito de exemplar dedicação de uns 30 carregadores que foram buscar água a uns quilómetros de distância regressando uns 29, com a água colhida através das maiores dificuldades da marcha de noite, quando podiam facilmente ter fugido” (Martins, 1936: 80).
As Companhias de Carregadores, Auxiliares ou tropas de 3.ª linha tinham cerca de 150 homens e eram comandadas por Sargentos do Exército europeu (7), os quais, para o efeito, eram graduados em Capitães e passados alguns anos de bom desempenho, promovidos ao posto. Estes Oficiais eram conhecidos como “Oficiais da Mandioca” (8).
A longa experiência de “africanização” das nossas forças em África foi seguida no plano desenvolvido em 1968, no sentido de nivelar os esforços de recrutamento na Metrópole e expandir a força aos níveis desejados através do recrutamento cada vez maior no Ultramar. Os africanos que serviam nas unidades da frente representavam 30 por cento da força em 1966, e em 1971 tinham aumentado para 40 por cento. Esta expansão representou um aumento das tropas locais, em todos os teatros, de cerca de 30 000 para 54 500. No entanto, havia mais do que esta primeira camada de tropas no processo de “africanização”.
Antes das campanhas e deste aumento, as tropas locais foram reunidas não só pelas FA, mas também pelas autoridades civis e utilizadas como “unidades de segunda linha”, com as funções de guias, milícia civil, forças auxiliares, grupos de autodefesa para aldeias e outras funções especializadas (EME, B, Vol. I, 1988: 242). As unidades de autodefesa eram apenas civis armados que foram organizados e treinados para agir em defesa da sua aldeia, se esta fosse surpreendida pelos Guerrilheiros. A organização assim formada deu um certo grau de confiança às comunidades locais devido à capacidade, ainda que rudimentar, de defenderem os seus membros.
Em 1968 surgiram vários Grupos Especiais (GE) no Leste de Angola. Estes eram formados por rebeldes capturados ou por aqueles que se entregavam. Com o decorrer do tempo, foram utilizados em toda a Angola, especialmente no sector oriental. Havia noventa e nove grupos de GE e também estes foram incorporados nas forças regulares em 1972. Em 1974, estes noventa e nove grupos com a composição média de trinta e um homens totalizavam 3069 tropas.
Em Moçambique, os GE também foram organizados em 1970 e a sua estrutura, treino e funções eram semelhantes aos de Angola. A primeira organização consistia em seis grupos de 550 homens. Originalmente foram constituídos como pequenas unidades baseadas nos moldes de um típico pelotão ou grupo de combate ligeiro, e acabaram por atingir cerca de 7 700 homens em oitenta e quatro desses grupos. No princípio, eram liderados por Oficiais e Sargentos idos da Metrópole; no entanto, à medida que os quadros locais iam ganhando experiência, foram ocupando os lugares de comando e chefia.
Mais tarde, em 1971, os treinos dos GE foram alargados para incluir uma iniciação na qualificação de Pára-Quedistas. Foram estabelecidas doze unidades deste programa como Grupos Especiais Pára-Quedistas (GEP) e agregados à Força Aérea como um adicional das Tropas Pára-Quedistas normais. Cada uma das doze unidades tinha um Tenente como comandante, um Sargento especialista em operações psicológicas, quatro Sargentos como comandantes de subgrupo, dezasseis Cabos e quarenta e oito Praças, num total de setenta homens. Na totalidade, os GEP eram cerca de 840. Para além dos saltos de preparação, estas unidades raramente foram utilizadas nesta modalidade e eram posicionadas de helicóptero, à semelhança das unidades normais de Pára-Quedistas. Pode-se concluir que o seu treino especial era uma manifestação do interesse e apadrinhamento dos Pára-Quedistas portugueses pelo General Kaúlza de Arriaga, o qual, foi, enquanto Secretário de Estado da Aeronáutica, o criador das Tropas Pára-Quedistas.
Na Guiné, em 1964, foram criadas unidades semelhantes aos GE como forças para-militares, chamadas Milícias. Passaram a chamar-se Milícias Normais e Milícias Especiais, dependendo das funções de cada uma. As Milícias Normais tinham um papel defensivo, protegendo a população de ataques, viviam nas aldeias ou perto delas e estavam sob o controlo operacional do comandante militar local. A Milícia Especial conduzia operações de contra-insurreição ofensivas longe das defesas locais.
Em 1971, foi formado um Corpo de Milícias para integrar todas as Milícias e Tropas de 2.ª linha no Exército regular. O corpo foi organizado por companhias e juntou cerca de quarenta com mais de 8 000 homens, principalmente armados com espingarda G-3 e bazucas. Havia igualmente um Comando-Geral de Milícias que geria a sua administração e formação. A sua formação era conduzida em três centros e o respectivo curso durava três meses.
As Milícias eram bastante eficazes na protecção das aldeias e na consequente libertação de tropas regulares para outras operações. Já nas últimas etapas das campanhas, as Milícias eram responsáveis por 50 por cento dos contactos com os rebeldes. No final das campanhas, estas Milícias totalizavam quarenta e cinco companhias de Milícia Normal (cerca de 9 000 homens) e vinte e três grupos de Milícia Especial (cerca de 713 homens) (EME, B, Vol. III, 1988: 110).
Ainda na Guiné, os Comandos recrutados localmente eram conhecidos por Comandos Africanos (Cavalheiro, 1979: 1 e 2), cujas Praças eram integralmente constituídas por negros nativos. Acerca destas tropas diria Spínola, Comandante-Chefe das Forças Armadas na Guiné, ao formar a 1.ª Companhia de Comandos Africanos, a 11 de Fevereiro de 1969, referindo-se às bases da sua formação e uso, conforme os princípios da africanização estabelecida em Lisboa em 1968: “A nossa Força Militar Africana tem-se afirmado gradualmente e inclui agora uma unidade de elite, a 1.ª Companhia de Comandos Africanos, formada exclusivamente pelos filhos nativos da Guiné... A vossa ascensão à posição de Comandos do Exército Português marca uma etapa significativa no progresso de todos os guineenses” (Cavalheiro, 1979: 1).
Ao transferir os seus esforços de recrutamento para o Ultramar para apoiar a Guerra de África, Portugal alcançou uma série de vantagens importantes. Em primeiro lugar, a pressão do recrutamento na Metrópole foi aliviada, com os consequentes benefícios na opinião pública. Nesta mudança, Portugal não só estava a seguir a tradição de utilizar tropas africanas para combater as guerras africanas, como também a aliviar os obstáculos domésticos à continuação da Guerra. Com esta mudança de atitude, diminuiu a pressão da mobilização na Metrópole, passando as necessidades de efectivos e as baixas a ser assumidas de forma crescente pelos recrutamentos locais nos três teatros de Guerra. Por conseguinte, havia menos testemunhos emocionais a regressar de África e a insatisfação pública doméstica manter-se-ia atenuada e até mesmo passiva por algum tempo.
Em segundo lugar, os africanos portugueses, que tinham o maior interesse nos resultados das Guerras e, por isso, a maior motivação para um final bem sucedido, iriam agora contribuir de forma visível para a luta. O envolvimento dos africanos na sua própria defesa era também visto como uma das melhores formas de mobilização política.
A partir do que fica analisado e desenvolvido, forçoso é concluir que os Altos Comandos Militares, função ao nível de Generalato, orientaram estrategicamente a Guerra, segundo as melhores perspectivas, face às aos recursos financeiros e humanos de que Portugal dispunha e do enquadramento internacional, que nos era totalmente desfavorável. O mesmo é dizer que este nível hierárquico possuía a formação adequada às funções que lhe foram atribuídas. Os erros e a falta de estratégia que influenciaram os resultados da Guerra de África são fundamentalmente da responsabilidade dos políticos. Isto não significa que se isentem os militares dos erros políticos que, nessas funções, possam ter cometido, mas tão só que se isola a estratégia militar da política, ainda que esta possa ser da responsabilidade da mesma pessoa singular. Se, com a informação disponível se pode ajuizar da formação deste nível de elites, não se pode, contudo, definir a sua origem segundo as hipóteses que à partida formulei.

Notas:
(1) John P. Cann, Oficial-Aviador da Marinha Norte-Americana na reserva, fez parte do Gabinete do Secretário Auxiliar da Defesa para Operações Especiais e Conflitos de Baixa Intensidade e, mais tarde, do Gabinete do Subsecretário de Estado da Defesa. Doutorado em Estudos de Guerra pelo King’s College, da Universidade de Londres, tem publicado artigos sobre o tema da contra-insurreição. Prestou também serviço no Pentágono e no Comando Ibérico da NATO, em Oeiras.
(2) Sobre o tema «população» desenvolvi um estudo aprofundado, particularmente, no campo dos hábitos e da religião, porém, por “economia” de páginas da obra, resumi esse trabalho em apenas algumas linhas.
(3) Termo utilizado nos documentos oficiais das FA.

(4) Para melhor aprofundamento sobre esta matéria ver Cann, 1998, o qual desenvolve este tema com grande profundidade.
(5) Os vencimentos das Praças nem chegavam para os pequenos vícios pessoais: tabaco, café e algumas bebidas. Eram os pais e outros familiares que, da Metrópole, enviavam alguns reforços monetários, como forma de complemento, situação que eu próprio vivi enquanto Praça em Angola, em 1969 e 1970.
(6) Carlos Selvagem é o pseudónimo do Oficial de Cavalaria Carlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos.

(7) Termo utilizado nos documentos oficiais das FA e na própria Lei.
(8) Informação colhida junto do Capitão Mendonça, Sub-Director da BE, no dia 12/09/2002. O Capitão Mendonça vem, há anos, estudando este tema. Segundo este entrevistado, a promoção de Sargentos a Capitão, para comandarem este tipo de tropas, terá existido até 1930.

(continua)

Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

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